É impressionante como alguns textos envelhecem rápido - e nem sempre bem. No primeiro semestre de 2008, eu era um aluno da graduação em História na PUC-Rio, tateando em busca de um tema de pesquisa para me apaixonar. Já tinha inclinações fortes pelo campo da história das religiões, mas não havia me decidido a respeito do quê exatamente iria explorar dentro dele. Um então colega de turma disse-me que eu deveria escrever sobre Lugo Méndez, um bispo católico que havia sido eleito há muito pouco tempo como Presidente do Paraguai, à revelia das normas do Vaticano e da Constituição de seu país. Aceitei a proposta e elaborei um trabalho de disciplina a respeito do tema. A professora responsável pela cadeira na qual o apresentei disse-me que eu deveria procurar publicá-lo. Aceitei a provocação e procurei uma maneira de fazê-lo.
O resultado foi um estranhíssimo exercício de história do tempo presente, vazado em um enquadramento teórico muito conservador, na qual se misturaram como arcabouço elementos da antropologia de Victor Turner e da teoria das relações entre experiência e literatura de Jorge Luis Borges. A ideia era dimensionar a militância política que levou Lugo à presidência a partir de sua base religiosa, descrevendo-a contra o plano de fundo das seculares relações entre clero católico e política institucional na América Latina, mas consegui realizar apenas uma descrição muito mais maniqueísta, na qual se confrontavam dois modelos de cristianismo: um cristianismo dos pobres, quase revolucionário, que eu conhecia de ouvir dizer da minha formação católica em uma região que, a seu tempo, absorveu alguns elementos da reflexão da Teologia da Libertação; e um cristianismo da preservação do status quo, mais político do que politizado, fortemente institucional, que era o avesso semi-oculto, mas onipresente, de toda a minha experiência do catolicismo. Da preocupação com esse segundo modelo de Igreja, segui até Eusébio de Cesareia, objeto de minha monografia de fim de graduação... Mas então já se trata de um outro estágio, descontínuo com o anterior, de minhas preocupações acadêmicas.
O artigo cujo link segue adiante, além do mais, foi superado pela própria história em curso. Em 2008 conclui este paper indicando que na figura do bispo e presidente Lugo poderia se gestar uma nova e construtiva síntese entre a atuação política e o imaginário católico latino-americano. Não foi o que aconteceu. Ou aconteceu de uma maneira muito diversa do quê eu poderia supor, com desdobramentos que me eram de todo insuspeitos. Em 2009 começaram a surgir relatos a respeito dos filhos de Lugo, concebidos enquanto ainda era sacerdote católico em exercício. Sua autoridade política, de fundo religioso - conforme argumentei em meu texto - foi ostensivamente minada pela imprensa paraguaia e internacional através da crescente ênfase nestas provas de sua infidelidade aos seus votos religiosos. A partir do momento em que admitiu uma série de relacionamentos maritais, as opiniões da base popular que havia possibilitado a eleição de Lugo à presidência começaram a se dividir mais e mais. Em junho de 2012, ele foi destituído de seu cargo pelo senado através de uma votação rápida e decisiva, na qual foi considerado culpado por "mau desempenho" enquanto presidente do Paraguai. Considerando-se vítima de um golpe, não de um impeachment, Lugo chegou a constituir um governo paralelo, que batizou de Gabinete da Restauração da Democracia, com sede em sua própria casa, em Lambaré, localidade nos arredores de Assunção. Em outro plano, políticos aliados do ex-presidente trabalharam para reverter o quatro político e garantir que Lugo reassumisse o poder executivo e concluísse o mandato presidencial. Nenhuma destas iniciativas teve sucesso: o Gabinete de Lugo foi dissolvido e o assunto de sua retomada do mandato foi dado oficialmente por encerrado. Mesmo se recusando a reconhecer a autoridade do governo constituído, Lugo foi eleito senador durante as eleições gerais de 2013, ocupando agora uma cadeira no senado e atuando pelas vias políticas costumeiras.
Em 2009, quando dos relatos de paternidade, e em 2013, quando de sua deposição, eu pensei mais de uma vez em retomar o paper publicado em 2008 e adicionar-lhe um longo post scriptum, ou talvez refundi-lo inteiramente... Decidi esperar uma e outra vez. Seria necessário escrever um novo artigo a partir dos restos do anterior. Não havendo emenda possível, o texto dado a público permanece testemunho de meu interesse e entusiasmo, de meu tatear pelo tema ao calor do momento em que ele emergia na imprensa e na pena dos analistas políticos. Espero retomar o assunto para uma reavaliação, mas apenas daqui a, talvez, uma década ou uma década e meia. O rico campo dos estudos da história do tempo presente, compreendidos em sentido estrito, é um lugar onde, agora, eu não me sinto mais exatamente confortável para semear minhas ideias.
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Título: Dom Fernando Lugo Méndez, SVD, ex-bispo emérito de São Pedro e presidente da República do Paraguai
Resumo: Primeiro bispo católico a chegar ao cargo máximo do poder executivo em uma democracia, o que criou problemas jurídicos inéditos quanto à sua situação canônica, Fernando Lugo Méndez foi eleito Presidente do Paraguai por uma ampla coalizão de partidos como alternativa às forças políticas tradicionais até então aí hegemônicas, o que representa um importante marco na consolidação do regime democrático deste país. Levado à militância partidária por motivações de base religiosa, o ex-sacerdote verbita, excomungado pelo Vaticano por seu envolvimento com a política institucional, se insere em uma tradição mais ampla de religiosos católicos que foram e são importantes atores sociais e centros simbólicos de ativismo no cenário cultural latino-americano e pode ser adequadamente dimensionado sobre o pano de fundo de um duradouro e multifacetado debate sobre a relação entre catolicismo e política no continente.
Investimento: acesso aberto